quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Da admissibilidade do homicídio qualificado-privilegiado

1. Introdução
Questão que tem intrigado a doutrina é se as circunstâncias privilegiadoras do § 1º do art. 121 do CP somente serão aplicadas ao homicídio simples (caput do art. 121) ou se tais circunstâncias são também aplicadas ao homicídio qualificado (§ 2º, art. 121), de maneira que a diminuição prevista no § 1º se estenda ao § 2º do mesmo artigo. Em outras palavras: é possível a admissibilidade do homicídio qualificado-privilegiado no Código Penal? Por exemplo, considera-se homicídio qualificado-privilegiado quando o sujeito mata a vítima impelido por um motivo de relevante valor moral, empregando fogo como meio de destruição da vida?
2. Da admissibilidade
A hipótese sob discussão é de conflito aparente de normas. Depende da natureza das circunstâncias a serem examinadas. As circunstâncias privilegiadoras, por serem circunstâncias subjetivas e por estarem relacionadas a pessoa do agente, repelem as circunstâncias qualificadoras subjetivas do § 2º (mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; por motivo fútil). Assim não pode invocar a minorante o agente que mata impelido por motivo de relevante valor moral e, ao mesmo tempo, determinado por motivo fútil. Tais circunstâncias não podem coexistir, pois se contradizem, são incompatíveis. O motivo de relevante valor moral anula o motivo fútil e vice-versa.
Todavia, as circunstâncias privilegiadoras, ínsitas no § 1º, do art. 121, podem concorrer com circunstâncias objetivas qualificadoras dos incisos III, IV e V do § 2º, do art. 121 (com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso, ou de que possa resultar perigo comum; à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido; para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime). Para responder a pergunta acima formulada o agente pode ser beneficiado com o privilégio se utilizar fogo como meio para matar a vítima, mas impelido por um motivo de relevante valor moral.
Esse é o entendimento sustentado por Damásio E. de Jesus, ao assinalar que existe perfeita compatibilidade entre uma circunstância de caráter subjetivo e outra de caráter objetivo, asseverando:
“O conflito ocorre entre as circunstâncias legais especiais. As circunstâncias legais contidas na figura típica do homicídio privilegiado são de natureza subjetiva. Na do homicídio qualificado, algumas são objetivas (§ 2º, III,IV e V, salvo a crueldade), outras, subjetivas (ns. I e II). De acordo com nossa posição, o privilégio não pode concorrer com as qualificadoras de natureza subjetiva. Não se compreende homicídio cometido por motivo fútil e, ao mesmo tempo, de relevante valor moral. Os motivos subjetivos determinantes são antagônicos. O privilégio, porém, pode coexistir com as qualificadoras objetivas. Admite-se .homicídio eutanásico cometido mediante veneno. A circunstância do relevante valor moral (subjetiva) não repele o elemento exasperador objetivo. O mesmo se diga do fato de alguém matar de emboscada e impelido por esse motivo” .
Luiz Régis Prado completa o pensamento afirmando:
É de enfatizar-se, nesse passo, que são havidas como circunstâncias preponderantes aquelas que resultam dos motivos determinantes do crime (art. 67, CP). Confere-se, pois, maior relevo às circunstâncias que influem na medida da culpabilidade, agravando ou atenuando a reprovabilidade pessoal da conduta típica e ilícita (v.g. motivo fútil, torpe, de relevante valor social ou moral).
Não é possível, porém, no delito de homicídio, admitir a coexistência de um privilégio e de uma qualificadora que atuem exclusivamente sobre a magnitude de sua culpabilidade. No entanto, admite-se o concurso de um privilégio e de uma circunstância qualificadora que afete apenas a magnitude do injusto, importando em maior desvalor da ação (art. 121, § 2º, III).
De acordo com a admissibilidade da coexistência entre privilegiadora e qualificadora no homicídio, o acórdão do Superior Tribunal de Justiça faz-se no mesmo entendimento:
Origem: STJ
Classe: RE – STJ - RECURSO ESPECIAL: REsp 922932 SP 2007/0028150-1
Data da decisão: 12/12/2007
Relator: Ministro FELIX FISCHER
PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. HOMICÍDIO QUALIFICADO-PRIVILEGIADO. COMPATIBILIDADE ENTRE QUALIFICADORA INSERTA NO ART. 121, § 2º, INCISO IV COM A FORMA PRIVILEGIADA. POSSIBILIDADE.
I - Não há incompatibilidade, em tese, na coexistência de qualificadora objetiva (v.g. § 2º, inciso IV) com a forma privilegiada do homicídio, ainda que seja a referente à violenta emoção. (Precedentes desta Corte e do Pretório Excelso).
II - Assim, a resposta afirmativa ao quesito atinente a forma privilegiada do crime de homicídio não implica a prejudicialidade do quesito que indagaria aos jurados acerca da qualificadora inserta no art. 121, § 2º inciso Ivdo CP (recurso que dificultou a defesa da vítima). Recurso especial provido (grifo nosso)
Como bem mostra o acórdão acima referido, pode o júri reconhecer a circunstância privilegiadora (agiu sob domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima) e a circunstância qualificadora (empregou meio que dificultou ou impossibilitou a defesa) ao mesmo tempo. Observa-se que neste acórdão as circunstâncias obedecem aos casos anteriormente sustentados em que só há conexão entre as qualificadoras objetivas (art. 121, § 2º, III, IV e V, salvo a crueldade) e as privilegiadoras subjetivas (art. 121, § 1º), não havendo incompatibilidade entre elas.
Tal entendimento consolida o fato de que, no homicídio qualificado-privilegiado, somente as circunstâncias objetivas da conduta qualificadora e as subjetivas da conduta privilegiadora se coadunam, isto é, se encaixam na seqüência lógica dos fatos. A circunstância do relevante valor moral (subjetiva) não repele o elemento exasperador objetivo da qualificadora.
A partir desse pensamento pode-se concluir que uma circunstância qualificadora subjetiva conjugada com a privilegiadora seria impossível, pois ambas seriam subjetivas, não podendo a consciência humana agir por motivo de relevante valor moral e por motivo fútil ao mesmo tempo, pois são circunstâncias antagônicas, se repelem.
Conclui-se então que só é admissível o homicídio em tese, se as circunstâncias qualificadoras forem objetivas e as privilegiadoras que são sempre subjetivas, trazendo à tona conseqüências que, para o agente, trazem uma grande elasticidade na sua área defensiva.
Tem-se que tal alargamento advém da imediata impossibilidade de o homicídio qualificado-privilegiado ser um crime hediondo. A Lei 8072/90 prescreve somente a figura do homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV e V), demonstrando apenas o interesse pelas circunstâncias qualificadoras.
Inicialmente, a Lei dos crimes hediondos não considerava como tal o homicídio qualificado, sendo incluída apenas quatro anos depois com a Lei 8930/94, com o objetivo de tão somente considerar como hediondo essa modalidade de homicídio e alguns outros crimes elencados no CP. Se houvesse a intenção do legislador em incluir como hediondo o homicídio qualificado-privilegiado já o teria feito oportunamente nessa lei, não deixando margem de interpretações extensivas.
Outra conseqüência é a competência do homicídio qualificado-privilegiado pelo Tribunal do Júri. Reconhecendo o privilégio pelos jurados, não fica ao arbítrio do julgador diminuir ou não a pena, pois a faculdade se refere apenas na quantidade da pena a ser aplicada dentre as possibilidades previstas na lei, pois reconhecido o homicídio qualificado-privilegiado, a inobservância da redução da pena implicará em violação de preceito constitucional contido em seu art. 5º, XXXVIII, alínea c, que impõe a soberania dos veredictos.
3. Conclusão
Assim sendo, constata-se que o homicídio qualificado-privilegiado é um crime praticado contra a vida humana, podendo englobar diversas peculiaridades (qualificadoras objetivas e privilegiadoras em concomitância no delito), aos quais irão influir diretamente na dosagem da pena. Demais disso, dentro da sistemática da ação penal, dada a importância deste tipo incriminador, a ação penal para a sua apuração será pública incondicionada de caráter especial, retirando a hediondez do delito e dando competência ao Tribunal do Júri quanto a classificação do crime. E, com isso, obrigando o juiz presidente a aplicar pena que diminui a condenação do agente.
Concluindo-se, assim, pela conseqüente confirmação da admissibilidade do homicídio qualificado-privilegiado no Código Penal Brasileiro.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Alan de Almeida. Da admissibilidade do homicídio qualificado-privilegiado. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set. 2010. Disponivel em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.29015&seo=1>.

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