TEORIA DAS ONDAS RENOVATÓRIAS: uma
concepção tridimensional de acesso à justiça
O acesso ao poder judiciário é um dos principais assuntos
debatidos pela doutrina. O acesso à justiça no ordenamento constitucional
brasileiro é insuficiente para demonstrar o vasto conteúdo que pode ser aplicado
aos aspectos que norteiam o assunto.
Foram inúmeras tentativas legislativas em estabelecer
contornos mais precisos no que diz respeito ao ingresso judicial de toda a
sociedade.
Foi apenas com Mauro Cappelletti e Bryant Garth, em que os
elementos da justiça distributiva se
aliaram às principais dificuldades de ingresso ao poder judiciário,
desenvolvendo a denominada teoria das ondas renovatórias.
Com a reunião de elementos para garantir um acesso à
chancela jurisdicional do Estado passou a ser um marco para o
constitucionalismo contemporâneo e revelou a necessidade de políticas
legislativas que viabilizem o acesso à justiça à luz das vertentes
renovatórias.
Acesso à justiça: avanço constitucional
As normas que integram o sistema jurídico interno de cada país
são criadas a partir dos anseios que norteiam a sociedade à época da sua
elaboração. Por conta disso, os aspectos históricos revelam grande importância
para a estruturação do ordenamento jurídico no aprimoramento dos seus preceitos
legais, de tal maneira que as normas anteriormente utilizadas serão adaptadas
aos atuais desejos da coletividade.
Na história do Brasil, inúmeras obras legislativas foram
elaboradas, tendo cada uma delas perspectivas diversas e voltadas aos momentos
vividos durante a sua aplicação.
O acesso dos litigantes às vias judiciais foi
um dos principais temas debatidos por essas legislações, mas foram as
Constituições Brasileiras que trataram o tema com maior ênfase.
Nalini salienta que as Constituições Brasileiras
respeitaram o princípio da garantia da via judiciária, não como gratuidade
universal de acesso aos tribunais, mas que possibilitavam a defesa de qualquer
direito.
A primeira Constituição Brasileira foi outorgada por D.
Pedro I durante a fase imperial, no ano de 1824. A referida legislação possuía
uma inovação importante no acesso ao Judiciário, sobretudo no que diz respeito
à independência funcional dada a este órgão.
Durante essa época, ainda foram criadas legislações especiais
que possibilitavam a insurgência dos demandados perante os órgãos
jurisdicionais, como o código penal, código de processo penal e código
comercial.
Mas a própria norma, impossibilitava o acesso ao Poder
Judiciário de determinadas classes sociais, tal como ocorria com os índios,
escravos, mulheres e crianças, não lhes sendo concedido legitimidade para
provocar os órgãos judiciais.
No ano de 1889 a crise econômica e política vivida no país
evidenciaram a queda do regime imperial, dando origem à proclamação da
República. Houve então a necessidade de elaboração de um novo texto
constitucional, a fim de reorganizar as situações do governo brasileiro.
A nova Constituição brasileira surge então em 1891, e seus
dispositivos em nada contribuíram para o acesso efetivo à via
jurisdicional.
A próxima Constituição seria a de 1934 que durante o regime
comandado por Getúlio Vargas aumentou os direitos conferidos àqueles que
pretendiam ingressar com demandas aos órgãos jurisdicionais.
Os mandamentos desta Constituição além de fixar a
obrigatoriedade da jornada de trabalho em oito horas, o direito ao salário
mínimo, a regulamentação do mandado de segurança e da ação popular, autorizou a
criação da assistência jurídica gratuita, garantia nunca antes prevista no
ordenamento constitucional do país.
A Constituição de 1934 cria a ação popular e a assistência
judiciária para os necessitados com isenção de custas, emolumentos, taxas e
prevê a obrigação dos Estados e da União de criarem órgãos especiais para tal
fim. Mas, somente com a Lei 1060, de 5 de fevereiro de 1950 - até hoje em vigor
com algumas modificações – é que os Estados interessaram-se pela criação dos
órgãos especiais destinados à prestação da assistência judiciária aos
necessitados.
Três anos depois, uma nova Constituição foi promulgada. Em 1937,
os traços de acesso ao judiciário deixaram de prosseguir, já que as garantias
previstas na ordem constitucional foram revogadas com o advento da nova carta
constitucional.
Os avanços constitucionais até então consolidados foram
suprimidos pelo regime ditatorial que se instaurara em 1937. A razão para tal
fato era a de que o Brasil estava sob iminente ameaça de infiltração comunista
e de que a qualquer momento poderia ocorrer uma guerra civil no país.
Se já não bastasse essa concentração de poder na presidência da
República, essa Constituição, ao contrário das demais, também sequer menciona o
clássico instrumento do equilíbrio constitucional, a divisão dos poderes,
registrando apenas a existência de um judiciário e de um legislativo.
A Constituição Brasileira promulgada no ano de 1946, teve
como objetivo a restauração da ordem democrática brasileira, buscando novamente
a independência funcional e a divisão de poderes entre legislativo, executivo e
judiciário.
A inafastabilidade de acesso à justiça garantida pela
Carta de 1946, proporcionou dúvidas
quanto à sua aplicação.
A partir da vigência da norma introduzida expressamente em nosso
sistema pela Constituição de 1946, cogitou-se tratar a garantia apenas daqueles
direitos do indivíduo contra o Estado, no sentido de direitos individuais,
liberdades públicas, direitos públicos subjetivos. Consolidou-se a posição de a
garantia abranger lesão de direito, incluindo aqueles em que pessoas privadas
fossem sujeitos ativos ou passivos.
Já a carta constitucional de 1967 disciplinava a matéria sobre o
mesmo raciocínio, até que a decretação do Ato Institucional nº 5 instituiu
diversas medidas que violavam o Estado Democrático de Direito.
A Carta Constitucional de 1967 previa ainda que, em relação a
algumas matérias, seria obrigatório o esgotamento das instâncias
administrativas antes que os litígios fossem remetidos à apreciação do Poder
Judiciário.
Somente com a revogação dos Atos Institucionais pela emenda
constitucional de 1978 é que se começou a amenizar as consequências advindas do
período ditatorial e que o acesso à justiça começou a despertar interesse dos
pesquisadores brasileiros.
Dentre as cartas constitucionais existentes no Brasil, a atual Constituição da República
Federativa do Brasil, promulgada no ano de 1988 foi a que mais se prestou a garantir um acesso ao Poder Judiciário
daqueles que o necessitam, prescrevendo em seu artigo art.
5°, inciso XXXV que “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Trata o dispositivo, da consagração, em sede constitucional, do
direito fundamental de ação, de acesso ao Poder Judiciário.
Este princípio se reveste em um direito de ação em sentido
amplo, já que o Poder Judiciário não pode abster-se a examinar os pedidos a ele
encaminhados, ainda que a sua pretensão não seja reconhecida por lhe faltarem
condições suficientes para isso.
Podemos concluir que a ordem constitucional vigente, instaurada a
partir de ideais democráticos, constituiu a mais importante norma pertinente à
aplicação da inafastabilidade judicial. O acesso à justiça está ligado aos
fatos sociais surgidos com o tempo e o conceito de democracia consiste
justamente na igualdade de direitos em garantir a aplicação de seus preceitos a
todos os cidadãos, indistintamente.
No entanto, o acesso à justiça, não compreende o acesso
meramente formal ao Judiciário, necessitando a presença de alguns requisitos
processuais para que qualquer pleito seja apreciado, como ocorrem com as
condições da ação, pressupostos processuais, prazos e regularidades formais,
elementos essenciais para análise da pretensão meritória.
É dever do Estado, além de garantir o ingresso do
particular em juízo, possibilitar que as condições para a formação do processo
estejam presentes na demanda.
Outra perspectiva que envolve o acesso à justiça é a sua
gratuidade, onde possibilite o ingresso universal dos cidadãos hipossuficientes
que necessitam da chancela judicial do Estado para obter provimento
jurisdicional em seu favor. O artigo 5º, inciso LXXIV da CRFB/88 dispõe sobre a
obrigatoriedade de medidas estatais que garantam assistência jurídica integral
e gratuita, aos que comprovarem a insuficiência de recursos financeiros. O
mesmo texto constitucional prevê ainda a figura da Defensoria Pública como
órgão essencial à função jurisdicional.
A CRFB/88 também deu dimensão significante ao acesso à justiça,
impondo aos poderes públicos o compromisso de fornecer uma tutela jurisdicional
efetiva e capaz de solucionar os conflitos em consonância com os valores
fundamentais do Estado Democrático.
Importante, porém, é a distinção de tutela e prestação
jurisdicional, já que ambos os conceitos não integram o mesmo sentido, na
medida em que se tem como abstrato o direito de ação.
Será satisfatório o acesso à justiça quando o sistema é
aperfeiçoado internamente, tornando-lhe capaz de oferecer soluções justas e
efetivas no ingresso de qualquer cidadão que dela se queira utilizar.
Teoria das ondas renovatórias de acesso à justiça
As barreiras que impedem o acesso à justiça despertou interesse
no desenvolvimento de teorias dispostas a eliminar tais obstáculos e garantir a
aplicação dessa premissa no sistema interno de cada país.
Os estudos do direito processual apontam para a existência da
teoria das ondas renovatórias do acesso à justiça. Desenvolvida pelos expoentes
italianos Mauro Cappelletti e Bryant Garth, essa teoria sustenta a existência
de três vertentes que, reunidas, identificam as soluções para o ingresso aos
órgãos jurisdicionais de toda a sociedade.
Nas sociedades modernas o auxílio de um advogado é essencial ao
desenvolvimento dos meios hábeis à formalização do pedido, bem como para
decifrar os complexos procedimentos existentes na ciência processual. A
assistência jurídica, no entanto, deve ser inerente a todos os indivíduos que
dela necessitam, inclusive daqueles que não a podem custear.
Amparado nessa situação, é que a primeira onda enfatiza o
acesso à justiça voltado àqueles que necessitem de amparo jurídico, não podendo
custear as despesas de honorários e eventuais valores pagos a título de
diligência ou antecipação de custas processuais.
No ordenamento jurídico brasileiro, várias foram as
preocupações do legislador em possibilitar o ingresso de toda a sociedade aos
órgãos jurisdicionais. A exemplo disso, a criação da Lei 1.060/50 possibilita a
assistência jurídica gratuita aos que não podem arcar com as despesas
processuais. A criação das Defensorias Públicas também assume relevante papel
na defesa judicial dos necessitados.
A assistência judiciária, conforme salienta Cappelletti e Garth
(1988) é, insuficiente para que o sistema jurídico seja integrado por normas
eficazes ao seu acesso, pois seria necessário um grande número de advogados
disponíveis para auxiliar os que não podem pagar pelos seus serviços.
A segunda onda de acesso à justiça repousa na representação dos
direitos e interesses difusos, cujo entendimento reúne os interesses tidos como
gerais ou coletivos, não individualizados em um único ser.
O direito processual civil, como instrumento idealizador de
anseios particulares, nunca escondeu que suas premissas destinavam apenas à
solução de controvérsias entre interesses individuais. Reformas ocorridas acabaram
por modificar essa acepção, tornando necessária uma representação em benefício
da coletividade.
A representação dos interesses difusos no acesso à
justiça, é de grande relevância para qualquer sociedade, pois nela poderá se
reivindicar qualquer interesse coletivo, de modo a assegurar garantias
eficientes para a organização do bem comum.
Tendo por finalidade proporcionar aos litigantes meios diversos
à pacificação social, a terceira onda renovatória propõe métodos alternativos
que poderão solucionar eventuais controvérsias, tais como ocorre com a
arbitragem e a mediação.
Essa terceira onda de reforma inclui a advocacia, judicial ou
extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos. Ela centra
sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e
procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas
sociedades modernas. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas
primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série
de possibilidades para melhorar o acesso.
Por esses métodos, a intervenção do Estado não ocorre
diretamente, incumbindo-lhes, todavia, a adoção de normas pertinentes em sua
estruturação interna.
No Brasil, as ondas renovatórias de acesso à justiça
influenciaram a criação de diversos institutos e aperfeiçoaram instrumentos de
efetivação de chancela jurisdicional. São frutos dessa influência a assistência
judiciária integral e gratuita, a coletivização da tutela, a criação das
Defensorias Públicas, a criação dos Juizados Especiais, dentre outras
garantias.
Essa garantia, devidamente consagrada nas sociedades modernas,
enfrenta nos dias atuais o problema em sua efetivação, que lhe faz depender
muito mais dos méritos jurídicos do que em relação às distinções estranhas ao
próprio estudo do Direito.
Onde grandes limitações colocam entraves ao exercício da
garantia de acesso ao judiciário, como o custo do processo, a falta de
informação, morosidade da justiça, aumento da massa litigiosa, excesso de
formalismo e a falta de infraestrutura do Poder Judiciário.
Em razão das necessidades da população, bem como da
insuficiência jurisdicional na solução de litígios, os meios capazes de superar
as barreiras da garantia de acesso à justiça tornam-se cada vez mais frequentes
no sistema jurídico brasileiro, e, por tal razão, consistem em importantes
fatores de adaptação do sistema processual com a atual realidade brasileira.
Considerações finais
O acesso à justiça, constitui um dos mais importantes
sustentáculos do Estado Democrático de Direito. E a jurisprudência tem admitido
o ingresso ao poder judiciário de cidadãos não detentores de capacidade
postulatória.
A primeira onda renovatória está ancorada à hipossuficiência de
demandantes, na medida em que demonstra a preocupação em se criar parâmetros
que auxiliem os cidadãos que necessitem de amparo jurídico. Conforme se extrai
do último levantamento realizado pelo Ministério da Justiça no ano de 2004,
apenas 43,2% das comarcas brasileiras são atendidas por Defensorias Públicas.
Daí falar-se da importância da primeira onda renovatória, que representa um dos
principais anseios da sociedade e, consequentemente, num dos pilares
fundamentais do Estado Social Democrático.
A representação dos direitos difusos, bem assim da
necessidade de meios alternativos na solução de conflitos também representa
importantes manifestações advindas das ondas renovatórias. Do contrário, não
estar-se-ia garantindo uma tutela jurisdicional satisfatória, mas sim
concentrado seu acesso em ideais que não representam os valores
constitucionais.
O objetivo das ondas renovatórias, portanto, refletem na
concretização do direito de acesso à justiça para todos os cidadãos que a
almejam e, na garantia de suas respostas de forma eficaz, não bastando oferecer
possibilidade ampla de ingresso aos órgãos judiciais, mas sim em garantir a
efetividade dos resultados pretendidos.
O acesso à justiça não deve traduzir uma concepção
unidimensional de mero ingresso aos órgãos jurisdicionais, mas que alcancem uma
concepção tridimensional, assim consideradas as três ondas renovatórias que,
reunidas, passam a refletir no acesso à justiça como garantia constitucional.
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