segunda-feira, 6 de julho de 2015

APOSENTADORIA E DIREITO ADQUIRIDO

O Diário do Nordeste noticiou o depoimento de Verônica Maria Rodrigues na Polícia Federal (Diário do Nordeste, 02/03/2004, pág. 14), dando conta do inquérito instaurado para apuração do suposto crime de desacato, consistente em atirar uma torta no rosto do Ministro Ricardo Berzoini, quando aquela autoridade esteve em Fortaleza, dia 11 de janeiro. 

Do ponto de vista político o inquérito, nas circunstâncias, interessa muito mais à autora do fato supostamente criminoso do que à vítima e ao governo, e do ponto de vista jurídico é uma inutilidade. Pura perda de tempo para as autoridades policiais, que podiam estar cuidando de questões mais importantes.

Embora à luz do elemento literal se possa dizer que o fato de que se cuida configura o crime de desacato, na verdade tal fato está longe de configurar o desacato como ilícito penal.

Primeiro porque consubstanciou manifestação de caráter político, dirigida ao governante que vem pondo em prática exatamente o contrário daquilo que se podia esperar dele em face da linha política já tradicional do seu partido. Segundo, porque o gesto agressivo teve como razão as práticas do Ministro da Previdência, cargo já não ocupado por Berzoini no momento em que se deu o fato. Terceiro, porque consubstanciou, como ato político, uma repulsa a atitude que o próprio Ministro considerou indevida, tanto que pediu desculpas por havê-la adotado.

Repulsa provocada, pois ainda que tenha tido a melhor das intenções o Ministro adotou contra os velhinhos aposentados providência que realmente o fez merecedor de tal repulsa. E como ensina Magalhães Noronha “não se pode dizer desatacado o funcionário que provoca a repulsa ultrajante.”(Direito Penal, 19ª ed., Saraiva, São Paulo, 1992, vol. 4, pág. 311). A torta atirada ao rosto do Ministro simbolizou a censura justa de um significativo segmento da sociedade à linha política por ele adotada no trato das questões previdenciárias, em especial a forma pela qual pretendeu fazer o recadastramento dos idosos aposentados do INSS. 

Não pode ser considerada uma conduta isolada de alguém que tenha pretendido menosprezar uma autoridade, ofendendo a Administração Pública. Consubstanciou conduta de conteúdo político. Manifestação eloquente de insatisfação com o rumo tomado pelo Partido dos Trabalhadores depois de alçado ao mais elevado posto do poder político do País, em especial no que diz respeito à Previdência Social, cujo trato pelo atual governo corresponde exatamente ao oposto do que antes era preconizado. 

A doutrina reconhece que a censura justa, mesmo que áspera, não tipifica o crime. Neste sentido manifestam-se, entre outros, Paulo José da Costa Jr. (Curso de Direito Penal, 2ª edição, Saraiva, São Paulo, 1992, vol. 3, pág. 217) e Nelson Hungria (Comentários, Forense, Rio de Janeiro, 1959, vol. IX, pág. 425). Mirabete, invocando o apoio da jurisprudência, assevera que “não se caracteriza o desacato por ausência do dolo específico se a ofensa constitui apenas repulsa a ato injusto e ilegal da vítima, que deu causa, assim, ao ultraje.”(Manual de Direito Penal, Atlas, São Paulo, 2001, vol. 3, pág. 375). Se indiciada, Verônica certamente será absolvida. E se condenada – hipótese que apenas para argumentar se admite – o povo nela verá simplesmente uma vítima do arbítrio e da prepotência.

Depois de afirmada a inconstitucionalidade da contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentados, decidiu o Presidente da República enviar ao Congresso Nacional proposta de Emenda Constitucional com a finalidade de viabilizar a cobrança daquela contribuição.

Coloca-se, então, a questão de saber se, mediante Emenda à Constituição, é possível instituir contribuição a ser cobrada dos aposentados. Essa questão, porém, tem um inevitável desdobramento. Uma coisa é a instituição de uma contribuição sobre os proventos da aposentadoria. Outra, bem diversa, é a de saber se uma vez instituída tal contribuição, poderá ser ela cobrada dos que, à data de sua criação, já estavam aposentados, ou tinham já preenchido todas as condições necessárias para obter a aposentadoria.

A criação de uma contribuição de seguridade, mesmo para ser paga apenas pelos aposentados, é de validade duvidosa porque desprovida do caráter retributivo, essencial nessa espécie de tributo. De todo modo, é razoável admitir-se tal possibilidade, com o argumento de que a natureza jurídica das espécies tributárias é definida a partir da Constituição, e se esta permite contribuição de seguridade sem o caráter retributivo, pelo menos no plano jurídico formal não haverá o obstáculo. Inadmissível, porém, será a instituição de uma contribuição a ser cobrada de quem, na data de sua criação, já está aposentado, ou já reuniu as condições para aposentar-se. 

Tanto é inegável a existência de direito adquirido contra emendas à Constituição, tese, aliás, já consagrada pelo Supremo Tribunal Federal, como é inegável que o aposentado tem direito adquirido ao recebimento de seus proventos, fixados à luz das normas jurídicas vigentes na data em que foram reunidas as condições para a aposentação. Todo direito subjetivo decorre do binômio fato - norma. Em outras palavras, todo direito subjetivo é resultado de um fato, sobre o qual incidiu uma norma, atribuindo a ele, como efeito jurídico, aquele direito. 

Diz-se que há direito adquirido quando o fato, do qual o direito decorre como efeito da incidência da norma, já está consumado. Já é coisa do passado. E sendo assim, o direito do aposentado ao recebimento de seus proventos, nos termos da lei vigente à época em que foram completadas as condições para a aposentação, é o melhor exemplo de um direito adquirido, na mais límpida e induvidosa concepção em que tal expressão pode ser tomada, pois os proventos, como direito do aposentado, resultam, sempre e em qualquer caso, de fatos que estão definitivamente consumados.

Há quem sustente que os proventos dos aposentados não são imunes à tributação, e por isto é possível a instituição de um tributo que alcance tais proventos. A tese é correta, mas não se pode admitir a sua deformação. Os proventos do aposentado não estão imunes ao tributo. Por isto mesmo sofrem a incidência do imposto de renda. E o imposto de renda pode até ser aumentado. É um imposto que incide sobre a renda. Nada tem a ver com o regime jurídico específico da aposentadoria. Não é possível, porém, a instituição de um tributo que tenha como fato gerador, especificamente, o auferimento de proventos da aposentadoria, para ser suportado por quem já tem sua aposentadoria nos termos das leis vigentes antes da instituição desse tributo. 


HUGO DE BRITO MACHADO Advogado, Professor Titular de Direito Tributário da Universidade Federal do Ceará e Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5.ª Região (Aposentado)  

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