domingo, 15 de março de 2015

Posição da Obrigação no Campo Jurídico

O Direito situa-se no mundo da cultura, isto é, dentro da realidade das realizações humanas. Antepõe-se ao mundo da cultura, que é o universo do " dever-ser", um mundo do ideal, ao mundo do "ser", que é o mundo da natureza, das equações matemáticas. Por outro lado, o mundo da cultura, vale-se de outra dimensão da realidade que nos cerca, que é o mundo dos valores: por meio da valoração de cada conduta humana, atingimos o campo do Direito.

Direito é o ordenamento das relações sociais. Só existe Direito porque há sociedade (ubi societas, ibi ius). Assim, em princípio, para um único homem isolado em uma ilha, existirá o Direito, porém, no momento em que esse homem receba a visita de um semelhante. Isto porque, não mais estando o indivíduo só, irá relacionar-se com o outro homem, e essa relação é jurídica. Essa exemplificação histórica hoje já não pode ser peremptória, pois mesmo o indivíduo solitário em uma ilha, sabendo que existem outros indivíduos no universo, deve preservar os valores e recursos ambientais. Desse modo, em sociedade, nos múltiplos contatos dos homens entre si, relacionam-se, pois uns dependem dos outros para sobreviver.

Pois bem, dentro da sociedade (e até mesmo fora dela, embora não seja esse o enfoque que aqui se queira dar), o homem atribui valor a tudo o que o circunda. O homem que tem sede dará valor maior à água; o homem que não tem teto dará valor maior à morada; o homem abastado, a quem essas necessidades básicas não afligem, dará valor maior quiçá ao lazer, ao esporte, aos contatos profissionais etc. Ora, tais valores, isoladamente considerados, ainda se apresentam de forma estática; contudo, servem de estímulo para que o homem sedento procure água; para que o homem sem teto procure abrigo; para que o abastado procure algo mais dentro de sua escala de valores.

A relação jurídica estabelece-se justamente em função da escala de valores do ser humano na sociedade. A todo momento, em nossa existência, somos estimulados a praticar esta ou aquela ação em razão dos valores que outorgamos às necessidades da vida: trabalhamos, compramos, vendemos, alugamos, contraímos matrimônio etc.

Em palavras singelas, eis aí descrita a relação jurídica: o liame que nos une a nosso semelhante, ou a uma pessoa jurídica ou ao Estado e que pode tomar múltiplas facetas.

A obrigação, no sentido que ora se examina, consiste numa relação jurídica. Ninguém, em  sociedade, prescinde desse instituto. A todo instante em nossa vida, por mais simples que seja a atividade do indivíduo, compramos ou vendemos, alugamos ou emprestamos, doamos ou recebemos doação. Existe, portanto, um estímulo, gerado por um valor, para que seja por nós contraída uma obrigação. Há um impulso que faz com que nos comprometamos a fazer algo em prol de alguém, recebendo, na maioria das vezes, algo em troca.

Ao mesmo tempo que esse estímulo nos impulsiona a obter algo, como no caso de passarmos diante de uma vitrina e sermos levados a adquirir a mercadoria aí exposta, o fato de partirmos para a relação jurídica objetivada faz também com que exista limitação a nossa própria liberdade. Isto porque, no caso descrito, se adquirirmos a mercadoria que nos atrai, teremos de despender certa quantia, a qual, certamente, poderia ser destinada a outras atividades, talvez até mais necessárias.

Do sopesamento do estímulo e da limitação psíquica que sofremos nasce a noção essencial de obrigação. E o estímulo e a limitação psíquica é que traçarão o perfil do homem equilibrado, pois, exacerbando-se um ou outro elemento, sociologicamente falando, o indivíduo desequilibra-se e, consequentemente, também seu patrimônio.

Dentro desse contexto, podem ser tratadas da mesma forma as obrigações de cunho não jurídico, como as obrigações morais, religiosas, ou de cortesia.

A obrigação jurídica é aquela protegida pelo Estado, que lhe dá a garantia da coerção no cumprimento, que depende de uma norma, uma lei, ou um contrato ou negócio jurídico.

Destarte, por trás do estímulo e da limitação, na atividade do agente, existe um ordenamento total subjacente.

Em toda obrigação, existe a submissão a uma regra de conduta. A relação obrigacional recebe desse modo a proteção do Direito.

Sob esses aspectos, a teoria geral das obrigações representa ponto fundamental que desdobra o campo do Direito Civil e espraia-se pelos diversos caminhos do Direito. É no direito obrigacional que posicionamos um problema fundamental: de um lado, a liberdade do indivíduo, sua autonomia em relação aos demais membros da sociedade e, de outro lado, a existência dessa mesma sociedade ao entrelaçamento de relações, que devem coexistir harmonicamente.

A sociedade não pode subsistir sem o sentido de cooperação entre seus membros, pois, no corpo social, uns suprem o que aos outros falta. Essa necessidade de cooperação faz nascer a imperiosa necessidade de contratar, negociar. Os membros da sociedade vinculam-se entre si. Esse vínculo, percebido nos primórdios do Direito Romano. tinha cunho eminentemente pessoal, incidia diretamente sobre a pessoa do devedor, a tal ponto que este podia ser convertido em escravo, caso não cumprisse o prometido. Tal serve para demonstrar claramente que, se hoje o vínculo obrigacional é psicológico, já houve tempo na História em que o vínculo foi material.

A economia de massa cria o contrato dirigido ao consumidor, um negócio jurídico geralmente com cláusulas predispostas, única forma de viabilizar a nova realidade de consumo, em que não é dado ao contratante discutir livremente as cláusulas. Entre nós, o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11-9-1990) instituiu um microssistema jurídico dirigido a essas relações jurídicas de consumo que hoje dominam as relações negociais.

Não é, porém, unicamente o estímulo criativo do homem que faz nascer a obrigação. Há obrigações que surgem de situações jurídicas de desequilíbrio patrimonial injustificado, em que a vontade desempenha papel secundário: o enriquecimento sem causa em geral. Por vezes, dentro desse círculo maior do injusto enriquecimento, ocorre um pagamento indevido, que gera a obrigação de restituir.

Por vezes, a vontade não atua no sentido precípuo de criar uma obrigação, mas no de ocasionar intencionalmente um dano, com consequente prejuízo. Nasce a obrigação de reparar o dano, de pagar indenização. Também pode ocorrer que a vontade não atue diretamente a fim de criar um dever de indenizar, mas a conduta do agente, decorrente de negligência, imprudência ou imperícia, culpa no sentido estrito, ocasiona um dano indenizável no patrimônio alheio.

Não bastasse esse quadro, perfeitamente caracterizado no direito privado, p indivíduo, inserido no ordenamento do Estado, tem obrigações para com ele. O Estado, para a consecução de seus fins, impõe que determinados fatos originem obrigação de solver tributos, possibilitando meios financeiros à Administração. A obrigação tributária decorre do poder impositivo do Estado, embora subjacentemente sempre haja uma vontade ou atividade inicial do contribuinte, direta ou indireta, que a impulsiona.

A todo direito corresponde uma obrigação, um dever.

Fernando Noronha sintetiza,

"o Direito das Obrigações disciplina essencialmente três coisas: as relações de intercâmbio de bens entre as pessoas e de prestação de serviços (obrigações negociais), a reparação de danos que umas pessoas causem a outras ( responsabilidade civil em geral, ou em sentido estrito) e, no caso de benefícios indevidamente auferidos com o aproveitamento de bens ou direitos de outras pessoas, a sua devolução ao respectivo titular (enriquecimento sem causa)" 


Silvio de Salvo Venosa, Direito Civil




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